Ferrovias para Brasília - 1968
O primeiro trem para Brasília
Revista "Manchete", 1968 – Revista Ferroviária, Jun. 1968
Centro-Oeste nº
87 (1º-Fev-1994)
Esta matéria descreve a viagem dos jornalistas e autoridades no trem que inaugurou a ligação do Rio de Janeiro a Brasília pelos trilhos. Foi reproduzida
na Revista
Ferroviária de Junho-1968, que justificou a transcrição
"para que o caro leitor sinta como a moderna imprensa brasileira
encara o transporte ferroviário. O nome do repórter
não foi citado.
A saída estava marcada para as 18h30 da sexta-feira. Todos os convidados
deveriam estar pontualmente na gare D. Pedro II, no Rio de Janeiro, porque
o trem chegaria a Brasília às 10h da manhã de domingo, com pontualidade
britânica. Isso era questão de honra.
Assim, 5 minutos antes da partida, as cabines já estavam ocupadas.
Eram 5 carros: — O primeiro para os militares; o segundo para os jornalistas,
cinegrafistas e convidados estrangeiros; no terceiro iam técnicos do Ministério
dos Transportes; os outros 2 eram o carro-restaurante e o dos ferroviários.
Quarenta horas de viagem pela frente — todos sentiam-se bandeirantes
na viagem pioneira.
Na saída do Rio, quase ninguém prestou atenção aos subúrbios que desfilavam
pelas janelas. Era a hora dos conhecimentos, das apresentações e das conversas
em tom mais grave. Passa um trem apinhado de gente até o teto. O general
Elísio Coutinho faz um comentário lacônico: — "O governo devia proibir
isso".
No restaurante, os jornalistas comentavam a pontualidade, devido à qual,
um colega ficara no Rio. Também surgiu a primeira crítica: — Só havia
homens no trem. Militares e civis começavam a falar da mesma coisa, quando
apareceram as duas comissárias, vestidas de azul, usando luvras, sorridentes
e simpáticas. Aline e Lúcia (não demorou muito para que todos se apresentassem)
teriam de atender aos 40 passageiros durante o jantar, no joguinho de
baralho e nas rodas onde se tomava uísque.
Assim, com euforia geral, aconteceu o primeiro atraso: — O jantar ferroviário
foi servido num horário fora do comum. Aline e Lúcia respondiam a perguntas
— de onde eram, família, ocupações — , quando o trem fez a primeira parada,
em Barra do Piraí, RJ. Apenas 1 minuto.
Uma hora depois, havia poucos passageiros no restaurante. Quatro oficiais
discutiam sobre a indústria automobilística. Outros encolhiam-se nas poltronas.
Às 3h da madrugada, o chefe do trem passa com uma lanterna e anuncia:
— Daqui a ponco chegaremos a São Paulo. É melhor os senhores irem dormir.
Ainda faltam 35 horas...
Não havia ninguém interessado na chegada à Estação da Luz, mas muitos
grupos conversavam em voz alta. Um pedido de "não cantem alto quando passarem
pelo carro dos generais". Despedidas. Então, aparece São Paulo, isto é,
entram os jornalistas paulistas, que não sabiam do pedido de silêncio
e ingressam no trem cantando, juntamente com o colega carioca que se atrasara
no Rio: — "Se eu perdesse essa viagem o Andreazza ficaria zangado, e com
razão".
Às 3h45, quem dormia foi acordado. Eram Campinas, o que queria
dizer baldeação para o trem da Cia. Mogiana. No futuro, quando os passageiros
saírem do Rio para Brasília, terão essa parada obrigatória, trocando a
Central pela Mogiana. Os engenheiros reúnem os jornalistas para uma explicação
coletiva:
— Os trens da Central trafegam em bitola larga; os de São Paulo para
Brasília têm bitola estreita. A ferrovia paulista é menos bitolada que
a carioca.
Aquela mudança também provocou o início da viagem propriamente dita.
Agora, com 10 carros e quase 70 passageiros, a composição tinha outra
ordem. O carro dos militares era o último e o dos jornalistas passou a
ser o primeiro. Um camareiro, elegantemente uniformizado, dava os últimos
retoques nas cabines.
Ar condicionado, lençóis novos e um cheiro de eucalipto, tudo convidando
ao sono. Mas, apesar disso, a maioria insistia em permanecer no restaurante
— "para experimentar a da Mogiana". Surgiu um jantar-da-madrugada, com
bife, frutas, ovos, leite e queijo servidos em mesas enfeitadas com flores
de Campos do Jordão. A direção da empresa também havia embarcado em Campinas.
A opção entre o restaurante e o dormitório ficava difícil.
Mas, às 10h da manhã, depois de passar por Jaguariúna, Mogi Mirim, Tambaú,
Santos Dumont e São Simão, pouca gente permanecia acordada. O trem rodava
em calma, enquanto o chefe José Benjamim falava orgulhoso dos seus 29
anos de ferroviário:
— Para mim, essa viagem é uma espécie de prêmio. Sou responsável por
365 toneladas. Se Deus quiser, vamos chegar em paz.
Lá fora, o interior paulista, com suas plantações de algodão e enormes
cafezais, nos quais os trabalhadores acenavam, surpreendidos com a bandeira
nacional que ia presa à locomotiva. Todos tinham esquecido, um pouco,
o ar pioneiro e ainda estávamos em Ribeirão Preto. O prefeito, o padre,
o delegado, crianças com bandeirinhas paulistas e muita gente na estação
lembravam aos passageiros que aquela era uma viagem histórica. Eram 11h40
de sábado — hora de almoço.
A cidade de Juçara já estava para trás, quando começaram as entrevistas,
no carro-restaurante. Elogios ao trabalho "realizado após a revolução
de abril", elogios ao ministro Andreazza — "o mais civil dos militares"
— , perguntas sobre a construção da ferrovia e sua utilização futura.
O trecho realmente inaugurado seria de Pires do Rio (GO) a Brasília.
Quem explicou foi um coronel que, desde o início da viagem, lia o livro
"O Desafio Americano":
— Isso se chama descobrir o Brasil — disse ele —, ligar pontos que nos
conduzem à cidade do presidente.
O coronel Fernando Allah, membro da Diretoria de Vias de Transporte,
agora conta um pouco da história da estrada:
— Em 1965, o Batalhão Mauá começou o trabalho em Araguari e conseguiu
fazer o progresso até aqui. Depois, fizeram-se mais 247 km de ferrovia
até Brasília. No total, trabalharam 600 militares e 1.200 civis.
Minas já estava sendo ultrapassada, com o maquinista Nelson Silva sustentando
uma velocidade de 80 km/h. Orgulhoso, ele também considerava uma recompensa
a sua função naquela viagem, aguardando o momento de receber cumprimentos
das autoridades, na hora da chegada. Era o que dizia, quando avistamos
Uberlândia (MG), onde o secretário de Transportes de São Paulo aderiu
à comitiva, numa parada de 5 minutos, sob o frio mineiro. Um apito, a
partida. Agora, a próxima parada seria Brasília.
Todos retornaram ao restaurante, onde um cardápio bem impresso dizia:
— "Jantar — Aperitivo — Creme de Mandioquinha — Peru à Califórnia — Arroz
Natural — Sobremesa — Café, licores — 20 de Abril de 1968". Estávamos
na última etapa e a decisão foi unânime:
— Ninguém vai dormir.
Uma ida ao carro dos militares permite conhecer o esquema de segurança,
organizado para evitar qualquer tipo de contratempo no percurso pioneiro.
Do Estado de São Paulo até Goiás, mais de 1.200 homens foram mobilizados
para guardar as estações por onde passaria o trem 120-120. Nas passagens
de nível, um mínimo de 5 soldados, comandados por um sargento, tinham
feito revisão 10 minutos antes de ouvir o barulho da máquina se aproximando.
Tudo cronometrado. Nos 558 metros de túnel, ninguém passaria, mesmo se
fosse funcionário da estrada fazendo revisão — só acompanhado por um policial.
E, no próprio trem, um delegado comandava uma equipe que ninguém sabia
ao certo de quantos homens era formada. O comissário paulista Antônio
Cardoso disse que se tratava de um esquema normal, fazendo questão de
esclarecer aos repórteres:
— Não é nada de mais. Essa importância é maior quando sabemos que viajam
conosco jornalistas de todo o Brasil.
A eficiência do esquema foi provada duas vezes. A primeira, às 23h30,
ainda em território de Minas, quando a máquina sofreu uma pane. Desceram
os homens da direção da Mogiana e alguns policiais, para verificar o que
houve, junto ao maquinista. Constatou-se que tinha sido apenas uma descarga
elétrica, e a viagem prosseguiu imediatamente. A segunda, quando se confirmou
que 2 trens — um na frente e outro atrás, com tripulações e materiais
especiais — davam cobertura à composição que fazia a primeira viagem Rio
— Brasília.
À 1h da madrugada de domingo, numa estaçãozinha de Goiás, podia-se
ver que agora eram soldados do Exército que respondiam pela nossa segurança.
Eles estavam lá, em forma, olhando os passageiros que acendiam as luzes
das cabines para saber o nome da cidade — Roncador. Na estação, o anúncio
de uma casa comercial: — "Compre na Casa Revolução, que desde o dia 31
de Março baixou os preços das mercadorias". Depois, o retorno ao sono,
às rodas de baralho, ao bate-papo em que a importância de Brasília ganhava
preferência como assunto. Muitos diziam que, só atravessando o País por
terra, como naquela hora, é que se pode sentir a importância da capital
federal.
Pela manhã, após o café, começa a crescer a expectativa. O trem já corria
nos trilhos cuja inauguração se fazia naquela viagem. Povo olhando curioso.
Conversas sobre índios, diligências, caçadores, onças. Renascia o ar pioneiro,
bem-humorado, do instante em que deixávamos a gare D. Pedro II. O mesmo
clima quando atingimos a pequena cidade de Ciro Castilho, a 150 km de
Brasília, onde já apareciam crianças com bandeirolas. Cada um procura
melhorar um pouco a própria aparência. Afinal, a viagem tinha sido descontraída,
mas a ocasião devia ser solene.
Malas prontas, máquinas preparadas, cadernetas nas mãos, militares, fotógrafos,
repórteres, todos começaram a ficar agitados na altura do quilômetro 20.
Muita gente dos dois lados dos trilhos. Gente do povo, endomingada, mulheres
com crianças no colo, escolares com bandeirolas, homens que andaram de
ônibus, de caminhão e de carro para saudar o primeiro trem, tão esperado
por Brasília. Aperto na estação Bernardo
Sayão. Começa o foguetório. A banda de música ataca "A Banda". Eram
10h17; o trem chegara no horário.
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