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Quando se fala da história de Brasília, é comum enumerar uma série de figuras que teriam defendido a transferência da capital do Brasil, do litoral para o interior, — a “ideia mudancista”, — mas quanto mais casos se acrescentam, menos se explica o que significam.
A preocupação de acumular ocorrências da “ideia mudancista” leva a embaralhar situações muito diferentes, — como a fundação de Salvador, para administrar desde a Amazônia até o extremo sul, já de olho na foz do rio da Prata; — ou a mudança do vice-reinado (apenas “Brasil”, excluído “Grão-Pará”) para o Rio de Janeiro, de modo a proteger o caminho do ouro.
O excesso também leva a misturar sucessivas ocasiões em que a Coroa portuguesa cogitou de se transferir para o “Brasil”, — Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, — sempre que parecia ameaçada na Europa.
Se o invasor domina a praia e a resistência se agrupa no interior, — ou se os rebeldes de Minas planejam estabelecer seu governo em Minas, — tudo parece caber na “ideia” de interiorização da capital.
Na falta de critérios, — e supondo-se que, quanto mais ocorrências, maior e mais nobre o pedigree da “ideia”, — incluem-se vários casos, no mínimo duvidosos, desde Pombal e Tosi Colombina, por volta de 1751; passando pelo primeiro-ministro inglês William Pitt, em publicação apócrifa de 1809; até o “sonho de Dom Bosco”, adulterado por um grupo de Goiás para manipular os sentimentos religiosos de Israel Pinheiro, suspeito (por justos motivos) de pretender construir a futura capital no Triângulo Mineiro.
Um critério seria questionar o que a lista de ocorrências deve provar: — A validade da “ideia mudancista”, pelo grande número de vezes que foi “ventilada”? — A respeitabilidade da “ideia”, pela “grandeza” das personalidades que a defenderam? — Provar que se tratava de um antigo e persistente “anseio dos brasileiros”? — Demonstrar que a construção de Brasília não foi mero capricho de JK como indivíduo?
Conforme a resposta, a lista de ocorrências da “ideia” poderia ser alongada, — pois sempre é possível intercalar fatos adicionais, como a “previsão” do jornalista piauiense David Moreira Caldas, em 1876, de que o Império não passaria de 1889 e a capital seria transferida para a ilha do Bananal, no rio Araguaia; ou um número desconhecido de publicações e discursos goianos dos séculos XIX e XX, que ainda se venham a descobrir. — Ou poderia ser resumida aos casos que de fato expressaram forças atuantes, como o pacto de federação da época da Independência (cujo significado permanece tanto mais escondido, quanto maior é o palheiro).
Identificar as motivações e seus agentes, — equilíbrio da federação, povoamento, defesa, interesses locais (embora de interpenetrem), — também permitiria agrupar o excedente de ocorrências em subconjuntos mais inteligíveis.
Ainda mais instrutivo pode ser o exercício inverso, — analisar as listas de ocorrências da “ideia” compiladas por diferentes autores, em várias épocas, para detectar possíveis inclinações, pelo levantamento de quais casos escolhem ou omitem, — como fez Márcio de Oliveira, sob o título “O passado de um mito: histórico das ideias sobre mudança da capital” [Márcio de Oliveira. Brasília: o mito na trajetória da nação. Paralelo 15, Brasília, 2005, cap. 2, p. 77-112].
Para isso, elencou 18 “fatos”, e tabulou quais foram citados (ou não), em obras publicadas de 1957 a 1980 por 6 “historiadores” engajados na “defesa” de Brasília. — Com isso, expõe uma redução do papel atribuído aos goianos e aos militares, bem como um ocultamento do empenho de JK e de Israel Pinheiro contra a escolha do Planalto Central.
Mas afinal, como surgiu essa prática de listar ocorrências da “ideia”, — e como se desenvolveu?
Essa prática esteve ausente na época da Independência. — Hipólito e Bonifácio falam de abrir estradas, aumentar o povoamento, o comércio e a riqueza do Reino, segundo fórmulas “ilustradas”, correntes na época, com alguns exemplos da Holanda, Rússia, Estados Unidos; — enquanto os “malditos republicanos” falam de colocar a Constituinte brasílica fora do alcance das armas de D. Pedro, o que vale dizer, longe do Rio de Janeiro.
Em 1852, Holanda Cavalcanti evita revirar o passado, — limitando-se a afirmar que os senadores lembravam “uma espécie de promessa” da época da Independência. — Listar ocorrências da “ideia” equivalia a reabrir feridas, o que, a seu ver, era tudo o que menos convinha naquele momento.
Em 1851, Vanhagen, — que vinha apresentando uma “ideia” isenta de antecedentes, brotada do puro estudo dos mapas, — admite ter sido informado (com grande atraso) de 2 casos anteriores:
Mas só em 1877, finalmente apresentará uma lista um pouco mais completa de ocorrências anteriores da “ideia”, — em ordem invertida ou embaralhada, — após descartar a “promessa” citada por Holanda Cavalcanti, que diz não ter conseguido “averiguar” [ao longo de 25 anos, de 1852 a 1877]. O que fica é*:
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(*) A questão da capital: marítima ou no interior. Viena, 1877 [p. 21-24], —
remetendo à História geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal. Rio de Janeiro, 1877 [tomo 2, p. 1190-1192].
A primeira lista, portanto, nasceu expurgada, — da presença de “solapados republicanos”; da promessa de D. Pedro, implícita na publicação das Instruções aos deputados paulistas; e do acordo entre os deputados brasileiros em Lisboa. — Ou seja, nasceu sem ligação entre os fatos: mera sequência aleatória, expurgada de significados; e interpolada com um caso duvidoso, estrangeiro (William Pitt); um caso sem data (Hipólito publicou vários artigos); e um caso tão fora de ordem cronológica como pouco relevante (Memória do conselheiro Veloso a um D. João que jamais sairia do conforto).
A ideia da capital no interior
Varadouro
Hipólito
Bonifácio
Independência
Vasconcelos
Império
Varnhagen
República
Cruls
Café-com-leite
Marcha para oeste
Constitucionalismo
Mineiros |
Goianos
A origem da história
Ferrovias para o Planalto Central
A idéia de Brasília na Independência
Representação do povo do Rio de Janeiro
Republicanos
O fim do pacto