Independência e localização
da capital
Representação do povo
do Rio de Janeiro
(maio de 1822)
Trechos de Republicanos e libertários
Renato Lopes Leite - Ed. Civilização Brasileira, 2000
« A noite de 29 para 30 de maio de 1822 foi muito movimentada
na Tipografia Silva Porto, oficina onde se imprimia o jornal Correio
do Rio de Janeiro, do jornalista libertário João
Soares Lisboa. Desde que, na semana anterior, uma "Representação
do Povo do Rio de Janeiro", com mais de seis mil assinaturas,
por iniciativa do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, havia
ponderado ao governo sobre a necessidade de "Convocação
de Cortes Brazilianas" ou "Assembléia Geral Representativa",
o ambiente político na Corte ficara carregado.
Desde então, reações contrárias à
Constituinte veiculadas na imprensa e inquietantes rumores fizeram
com que os seis redatores e responsáveis por aquela "Representação
do Povo do Rio de Janeiro" se encontrassem, naquela noite,
na Tipografia Silva Porto. Haviam redigido a "Representação
do Povo do Rio de Janeiro", primeiramente, o jornalista Joaquim
Gonçalves Ledo; em segundo lugar, o desembargador e presidente
do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, José Clemente
Pereira; em terceiro lugar, o padre, jornalista e professor de filosofia
Januário da Cunha Barbosa; em quarto, o padre Antônio
João Lessa; em quinto, o jornalista libertário já
referido, João Soares Lisboa; e em sexto lugar, o desembargador
Bernardo José da Gama. Essa revelação, em ordem
de importância, é publicamente divulgada pelo próprio
João Soares Lisboa (...).
A situação era tensa. Havia alguns dias, dispunha-se
da informação de que o próprio D. Pedro havia
ficado insatisfeito com a "Representação do Povo
do Rio de Janeiro" e não queria a reunião de
"Cortes ou Assembléia Nacional no Brasil". Mais
de um motivo poderia explicar a insatisfação do regente;
um deles seria, por exemplo, o teor da "Representação".
Em oito itens, era solicitado ao príncipe regente:
1º) uma "Assembléia Geral das
Províncias" com no mínimo 100 deputados;
2º) com sessões públicas para
preservar a "união" do Reino Português
em "justas condições", através
de
3º) alterações, reformas e
emendas da Constituição que se fazia em Lisboa;
4º) ela exerceria o poder legislador;
5º) poderia instalar-se com 2/3 do número
total dos deputados;
6º) enquanto se esperavam as "províncias
ainda não coligadas", vigoraria o artigo 21 das "Bases"
[As "Bases da Constituição
Política da Monarquia" haviam sido juradas pelo governo
e pelos deputados constituintes no ano anterior. O artigo 21 estabelecia
que as resoluções da Constituintes de Lisboa só
valeriam "logo que pelos seus legítimos representantes
declarassem ser esta a sua vontade". Francisco Adolfo de
Varnhagen, História da Independência do Brasil, Brasília,
MEC/INL, 1972, 6ª ed., p. 95];
7º) a "Assembléia" se entenderia
por escrito com as Cortes de Lisboa sobre a "união
com Portugal, que o Brasil deseja conservar";
8º) o lugar de seu funcionamento seria
a "Sede da Soberania Brasílica".
Outro motivo que poderia explicar a insatisfação
de D. Pedro era o modo como tudo havia sido feito: a edição
do jornal Correio do Rio de Janeiro de 18 de maio de 1822,
que lançou publicamente a campanha, havia informado que o
"cidadão" deveria ir à Tipografia Silva
Porto para assinar a "Representação".
Se esses motivos não fossem suficientes, havia ainda um
último que pode ter contribuído para abalar o humor
do príncipe regente D. Pedro: a idéia de voto direto.
(...). Ao assinar, os concidadãos deveriam especificar se
eram favoráveis às eleições diretas
ou indiretas para a Constituinte.
No sábado, 1º de junho, contudo, fora convocado o Conselho
de Procuradores das Províncias. "Urgindo a salvação
do Estado", mandava José Bonifácio instalar,
no dia seguinte, o "Conselho de Procuradores Gerais das Províncias
do Brasil".
No dia 2 de junho, domingo, D. Pedro deu posse "imediatamente"
aos três procuradores das províncias que estavam no
Rio de Janeiro: um da Cisplatina e os dois eleitos pela Corte. Nas
palavras de D. Pedro, a instalação imediata se justificava
porque a "(...) Salvação da Nossa Pátria
[estava] ameaçada por facções"
Assim foi instalado o Conselho de Estado. Criação
do decreto de 16 de fevereiro de 1822, ele havia sido solicitado
pelas "representações" de Minas Gerais,
São Paulo e Rio de Janeiro, em dezembro de 1821 (as mesmas
do "Fico"). É intrigante notar que um Conselho
de Procuradores das Províncias, determinado desde o mês
de fevereiro, seja instalado assim de afogadilho, por intermédio
de um decreto que o convoca de sábado para domingo, e apenas
com três membros. Além do mais, quais seriam as "facções"
às quais se refere o príncipe regente, D. Pedro?
Enfim, no dia 3 de julho de 1822, segunda-feira, a Constituinte
foi convocada. A legislação eleitoral, dizia o decreto,
seria adotada pelo Conselho de Procuradores. João Soares
Lisboa, contudo, contestou a decisão do Conselho, que, em
10 de junho, adotou sessões secretas.
A essa altura dos acontecimentos, é prudente fazer uma pausa
e expor algumas interrogações. Haveria, por exemplo,
alguma relação entre os fatos narrados por João
Soares Lisboa — a crise política que se havia instalado com
a questão da Constituinte e das eleições diretas
— e o decreto de 3 de junho de 1822?
(...) parece lógico concluir que o governo era contrário
à convocação de uma Constituinte. Além
de considerá-la inaceitável, o governo também
emitiu sinais de desaprovação às outras reivindicações
da "Representação do Povo do Rio de Janeiro",
como as eleições diretas e a mudança da
sede do país. Também ficara insatisfeito com a
linguagem da "Representação", e a forma
pela qual tudo se havia processado. Pergunta-se então: o
que teria levado o governo a convocar a Constituinte em 3 de junho
de 1822? Como, quando e por que houve uma mudança de opinião
dentro da burocracia estatal?
Evidencia-se, pois, a importância que a cúpula do
poder atribui à associação entre João
Soares Lisboa e o grupo de Joaquim Gonçalves Ledo. Da ótica
da cúpula do poder, a conseqüência da ação
pública veiculada pelo periódico Correio do Rio
de Janeiro acabou desencadeando o processo de convocação
da Assembléia Constituinte e Legislativa do Brasil.
Em 22 de outubro, contudo, João Soares Lisboa foi obrigado
a cessar a publicação de seu jornal, o Correio
do Rio de Janeiro. E convidado a deixar o Brasil no prazo máximo
de oito dias. Ele, Ledo, José Clemente Pereira e os outros
republicanos foram acusados, em 30 de outubro, de conspiração
para mudar a forma de governo. Os documentos da devassa explicam
que havia pessoas "espalhando doutrinas erradas, e contrárias
ao sistema de governo estabelecido, já em público,
já em associações particulares, [que] pretendiam
desacreditar o mesmo governo, alterar sua forma, e fomentar a discórdia
e a guerra civil" [Processo
dos cidadãos Domingos Alves Branco Muniz Barreto, João
da Rocha Pinto, Luiz Manuel Alves de Azevedo, Tomas José
Tinoco d'Almeida, José Joaquim Gouveia, Joaquim Valerio Tavares,
João Soares Lisboa, Pedro José da Costa Barros, João
Fernandes Lopes, Joaquim Gonçalves Ledo, Luiz Pereira da
Nóbrega de Souza Coutinho, José Clemente Pereira,
o padre Januário da Cunha Barbosa, e o padre Antônio
João de Lessa. Rio de Janeiro: Tipografia de Silva Porto
e Companhia, 1824].
José Bonifácio, em novembro, determinou que uma devassa
descobrisse os "partidistas", "os terríveis
monstros desorganizadores", "os facciosos e inimigos da
tranqüilidade pública, traidores ao Império",
pois, "conspirando contra o governo", fomentavam "a
anarquia, e a guerra civil" [Decisão
do governo nº 129, de 2 de novembro de 1822, in Octaviano Nogueira
(org.), Obra política
de José Bonifácio, Brasília, Senado
Federal, 1973]. Para o ministro, tratava-se de uma "facção
ultimamente forjada contra o governo" [Decisão
do governo nº 130, de 6 de novembro de 1822]. Uma "facção
oculta e tenebrosa de furiosos demagogos e anarquistas" que
"ousavam temerários, com o maior maquiavelismo, caluniar
a indubitável constitucionalidade do Nosso Augusto Imperador".
Era, enfim, um "infernal partido" de "traidores"
e "solapados demagogos" que, com "perversos e manhosos
desígnios", pretendiam "plantar e disseminar desordens,
sustos e anarquia" [Decisão
do governo nº 132, de 11 de novembro de 1822].
Todos foram absolvidos, à exceção de João
Soares Lisboa. Tratou-se de uma absolvição tardia,
pois os que não estavam presos tinham sido expulsos, degredados,
devassados, asilados ou convidados a deixar o Brasil. João
Soares foi desterrado para Buenos Aires. Retornou ao Rio de Janeiro
em 1823, e foi preso. Continuou, no entanto, a publicar seu jornal,
mesmo na cadeia. Foi anistiado em novembro de 1823, sob a condição
de deixar o Brasil. Descumprindo esta determinação,
dirigiu-se para Pernambuco e aderiu à Confederação
do Equador. »